A NÃO-MORTE DE NICANOR PARRA
Jessica Atal
Tradução ao português: Tanussi Cardoso e Leo Lobos
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O mundo inteiro pensava que Nicanor Parra não ia morrer nunca. Logo ele que ria de todos os mortais que se acreditavam imortais. Esses mesmos mortais pensavam que Parra ia ser algo assim como um imortal com corpo físico e presente, esperando visitas (desejadas ou não) em sua casa em Las Cruces, eternamente. Ele é um dos poetas imortais, disso não há dúvida, faz muito tempo; desde que criou e começou a brincar com a antipoesia e escrever sujeitando-se “à asa de uma mosca”. O que Parra fez – tirar a poesia do “paraíso da tolice solene” e instalar, em troca, sua “montanha-russa”, rompendo horizontes e fronteiras, era inconcebível no meio de tolices pomposas, vozes pomposas, que configuram quase a totalidade do universo poético chileno, antes e agora. E, na verdade, não estou exagerando.
Nicanor Parra tinha humor e uma ironia que ninguém possuía. Isso é o mais importante. Atrevo-me a dizer que foi o que lhe deu liberdade para escrever como escrevia. Para chegar a escrever como nunca ninguém havia feito antes. Ele foi um poeta que nunca acreditou ser o dono da verdade, apesar de ter dito mais verdades que qualquer outro. Deixou o ego de lado, vangloriou-se de suas limitações e escancarou as portas para o “absurdo”, influenciado pelas correntes da época, como o surrealismo e o dadaísmo. Deu- se o direito de dizer “que imundo é escrever versos”; de dizer “uma coisa por outra” ou de não saber “bem o que digo”, pois a “emoção me sobe à cabeça”.
Sua ironia era algo assim como sua dança demorada, bem compassada, indo e vindo, de um lado a outro, fazendo crer que se chega a alguma parte quando não se chega a parte alguma, mas ele, mesmo assim, continuava, indo para “fora da existência”, todos esses lugares impossíveis e impensáveis. Lançando olhares irados à Lua, entendendo que a vida, tantas vezes, não faz sentido e nos desafiando, instando-nos a nos convencer, de uma vez por todas, “que não existe deus!”
Facebook, Twitter, todas as redes sociais falam sem parar da norte de Nicanor Parra. Um dos mais insólitos posts que já li? “Nunca pensei que Nicanor Parra ia morrer, mas aconteceu”. Verdade? Realmente pensavam que este homem ia viver duzentos, trezentos, mil anos? Faz pouco escrevi sobre isso. Sobre uma escritora estoniana que esteve no final de 2017 no Chile, e uma das últimas coisas que me disse foi que sua visita a Nicanor Parra em Las Cruces ficara pendente. Sério?, pensei. Acreditará ela que ele vai esperá-la até a sua próxima visita a este país, que não é mais que “paisagem”, para depois de vê-la, morrer tranquilo? Claro que não o fez. A morte não espera ninguém. Muito menos quando se trata de um homem de mais de cem anos.
Na verdade, o sonho dessa escritora era o sonho de muitos… E a realidade de quase todo Chile: visitar Nicanor Parra en Las Cruces. A esta altura, haveria de indagar-se quem não foi bater-lhe à porta. Bem, eu não fui. E não me arrependo. De fato, no dia em que ele morreu, estava lendo um livro sobre as não-entrevistas que J.D. Salinger deu em sua vida. Muito ao contrário de Parra, o escritor americano quase não se deixava ver e, ainda menos, é claro, dar entrevista. Odiava ser uma figura pública e vivia em uma casa numa cidade pequena dos Estados Unidos, onde muitos poucos se atreveram a se aproximar. Hermann Hesse era parecido. Lutando para permanecer longe do mundo, odiava que lhe fossem bater à porta. No prólogo para “The Last interview and Other Conversations”, David Streitfeld fala de uma velha piada que diz que as entrevistas a Salinger bem poderiam ser reunidas sob o título Get Off My Lawn.
O oposto do que foi Parra. Com o passar dos anos, eran verdadeiras procissões que chegavam, com ou sem aviso prévio, à sua casa de praia, a deixar-lhe presentes, a partilhar um vinhozinho, a conversar, a tirar foto junto dele, a lhe presentear seus próprios livros de poesia (na esperança de que Nicanor descobrisse outro grande poeta como ele) ou a que lhes dedicasse por favor um libro seu, olhe, sabe, comprei-o especialmente antes de vir, e o senhor me faria tão feliz, porque não há ninguém, nenhum poeta vivo como o senhor, e que devesse ganhar o Prêmio Nobel, certamente que vai ganhar, o senhor vai ver, o próximo é o seu. Eu imagino Nicanor com paciência de santo escutando seus amigos e a tantos, milhares de estranhos, até à exaustão, até entediar-se e levantar-se da sala sem dizer palavra para ir dormir sua soneca, o que sei eu, mas longe de toda essa gente que o idolatrava como um deus, que ele, também imagino, nunca teve intenção de ser.
Não consigo imaginar o número de jornalistas que chegaram até Las Cruces com a firme convicção de conseguir a melhor entrevista. Aquela que os lançaria à fama, depois de revelar o que ninguém sabia de sua vida privada, de seus costumes, de seus hábitos e rotina de escrever, de seu dia-a-dia. Não sei, mas me atrevo a imaginar sua vida muito simples, como era sua poesia, clara, aberta, sem malícia, cheia de humor e espontaneidade. Uma vida única, sem medos bobos, uma vida vivida até às últimas consequências. Terá vivido tantos anos para compensar, de alguma maneira, a vida truncada de Violeta?
Mas a poesia de Nicanor Parra, e somente sua poesia, é o que, creio, me deve preocupar – ou melhor, ocupar – nestas páginas. Ele era, por assim dizer, de algum modo, sua poesia. “Creio que morrerei de poesia”, escreveu em “Poemas e antipoemas”. Claro. Ele era – e sempre será – o antipoeta que denunciou aquela linguagem roída pelo câncer a que os intocáveis poetas de sua geração se agarravam e reconheceram como o céu da poesía tradicional desmoronou. Já não se podía \ nem ele queria, permanecer nesse Olimpo inatingível a todos os mortais. Já não quis seguir escrevendo, somente, palavras solenes ou bonitas como “arco-íris” e “dor”, mas fez poesia com mesas e cadeiras e materiais escolares, como um artesão. Nicanor Parra convidou os poetas a queimar navios e a construir, “como os fenícios”, seu próprio alfabeto.
Nicanor, devemos-lhe tanto. Devemos-lhe o élan vital da poesía chilena de hoje. Você o sabia. Porém, isso não o fazia maior nem mais feliz. Ou talvez sim. Já disse que nunca o conheci. Nunca quis ser uma daquelas pessoas que iam a Las Cruces. Embora as que conheço sei que regressavam felizes, com o coração repleto, e agora em todos os lugares estão postando as “inestimáveis” fotografias onde aparecem com você, como ossos sagrados, como artefatos, como troféus.
Por onde começar o luto, Nicanor? Lendo o quê? “O homem imaginário” pela enésima vez? Claro que sim. Poema sublime. Sei que com o tempo aparecerão muitos livros inéditos, póstumos. Muitos poemas. E quantos cadernos seus que lhe haverão roubado. Você estava tão velho, Nicanor. Conseguiu deixar tudo em orden “nesta cidade condenada a desaparecer”?
Como imaginá-lo, homem imaginário? De onde? Claro, posso olhar seus retratos e admirá-lo como homem, porque por Deus que você era bonito, apesar das mil vezes que escreve que tinha um nariz podre ou que dar aulas lhe havia arruinado os olhos. Mas seu olhar, os ângulos de seu rosto, seu cabelo despenteado, suas mãos. Claro que você sabia fazer e desfazer com as mulheres. Sei que se apaixonaram por você até o infinito. Não sei se lhe importava, na verdade. Até onde o amor. Ou de onde. Encontrou sua “mulher precisa”? Essa “mulher que seja o que é”? Quantas foram, no final, suas “Mônicas Silvas”? Quantas vezes se apaixonou? Quantas o deixaram louco? Quantas foi o mais sábio de todos? Você foi um cavalheiro da palavra. Foi irmão, pai, avô. O melhor, diz sua familia. Escreveram mil artigos sobre você. Não sei se alguém pode escrever algo mais, algo original. A única coisa original, a única que vale a pena, afinal, é sua poesia. Ler sua poesia. Mas é pouco ou nada o que a esta altura ou descida se pode adicionar. De todos os cristos do vale do Elqui, de todos os antipoemas e artefatos, das folhas de parreira que eu como desde que nasci. O que posso lhe dizer, poeta, além de até sempre, amigo, irmão, cidadão de universos infinitos.
Ainda que tenha pedido perdão a seus fiéis leitores e se retratar de tudo que foi dito; ainda que tenha pedido perdão por haver se “expresado em linguagem vulgar”, mas em que outra o faria, se “essa é a línguagem do povo”; ainda que tenha dito que “a poesía passa – e a antipoesia também”, creio que sua obra é de longe uma das mais imensas. Aguda, inteligente, divertida e humilde, corajosa e contestadora. Sua poesia é como aquela mulher (a que você procurava) que é o que é. Sem pretensões nem máscaras. Fiel até à dor, até fazer chorar e rir os mares. Nicanor Parra, o Nobel não o merece. Você merece um prêmio muito maior, físico e matemático, como o que você ensinou, mas, ao mesmo tempo, indeterminado e relativamente antipoético.
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Jessica Atal é escritora, editora, crítica literária e ministra oficinas literárias. É autora dos livros em prosa, Ella también se va (2018) y WhatsApp, Amor (2016); e dos livros de poesia, Carne Blanca (2016), Cortina de elefantes (2014), Arquetipos (2013), Pérdida (2010) e Variaciones en azul profundo (1991). Estudou literatura na Universidade do Chile e se graduou com um Bacharelado em espanhol na Universidade de Utah, Estados Unidos. Escreveu no jornal El Mercurio durante 27 anos, entre 1988 e 2015. Foi gerente e editora do selo editorial El Mercurio-Aguilar, entre 2000 e 2009. É colaboradora das revistas Al Damir e Capital. Detentora do Prêmio Edward Said de 2014. Tem poemas traduzidos para o inglês, árabe e romeno, e publicados em diversas antologias, revistas e jornais internacionais. Atualmente trabalha como editora independente e ministra oficinas de escrita para adultos. É colaboradora permanente da revista cultural La Panera. Vive em Santiago. É mãe de Elisa, José e Nicolás.
Tanussi Cardoso é Poeta, letrista, crítico literário, jornalista, advogado. Formado em Jornalismo pela PUC-Rio, e em Língua Inglesa pelo British Brazilian Course do Rio de Janeiro. Em 2000 formou-se em Direito, na Faculdade Bennett, no Rio de Janeiro. Com Leila Míccolis, Glória Perez e Carlos Araújo, fundou a Editora Trote na década de 1980. Em 1975 participou da "Abertura poética - 1ª antologia de novos poetas do Rio de Janeiro", organizada por Walmir Ayala e César de Araújo. Como jornalista, trabalhou como repórter na Rádio JB, no Jornal Rio Letras e no jornal O Fluminense. Publicou os livros de poesias "Desintegração" (1979) e "Boca maldita" (prefácio de Leila Miccolis - Editora Trote, 1982), "Viagem em torno de" (prefácio de Salgado Maranhão - Ed. 7Letras, 2000) e "A medida do deserto e outros poemas revisitados", inserido na coletânea de poemas "Rios", apresentação de Thereza Christina Rocque da Motta (Editora ÍbisLibris, 2003), além de poesias e artigos em diversas antologias e periódicos por todo o Brasil.
Leo Lobos é poeta, ensaísta, tradutor e artista visual chileno. Fez residências criativas em Centre d´Art Marnay em Marnay-sur-Seine, França em 2002, e em no centro de cultura Jardim das Artes en Cerquilho, SP, Brasil. Publicou, entre otros, Cartas de más abajo (1992), +Poesía (1995), Perdidos en La Habana y otros poemas (1996), Ángeles eléctricos (1997), Camino a Copa de Oro (1998), Turbosílabas. Poesía Reunida 1986-2003 (2003), Un sin nombre (2005), Nieve (2006), Vía Regia (2007), Nieve (2013), Coração (2018). Gestor cultural do Espaço Cultural “Taller Siglo XX Yolanda Hurtado” da Fundação Hoppmann – Hurtado, em Santiago do Chile.